sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Santa Missa no B.Franklin Parkway Filadélfia



Homilia Santa Missa no B.Franklin Parkway
Filadélfia
27 de setembro de 2015
Hoje, a Palavra de Deus surpreende-nos com uma linguagem alegórica forte, que nos faz pensar; imagens vigorosas, que questionam as nossas reflexões. Uma linguagem alegórica que nos interpela, mas que anima o nosso entusiasmo.
Na primeira Leitura, Josué diz a Moisés que dois membros do povo estão a profetizar, anunciando a palavra de Deus sem qualquer mandato. No Evangelho, João diz a Jesus que os discípulos impediram uma pessoa de expulsar os espíritos malignos em nome d’Ele. E aqui aparece a surpresa: Moisés e Jesus censuram estes colaboradores por serem de mente tão fechada. Oxalá fossem todos profetas da Palavra de Deus! Oxalá cada um fosse capaz de fazer milagres em nome do Senhor!
Por sua vez, Jesus encontra hostilidade nas pessoas que não aceitaram aquilo que fazia e dizia. Para elas, a abertura de Jesus à fé honesta e sincera de muitas pessoas, que não faziam parte do povo eleito de Deus, parecia intolerável. Entretanto os discípulos estavam a agir em boa-fé; mas a tentação de serem escandalizados pela liberdade de Deus, que faz chover tanto sobre os justos como sobre os injustos (cf. Mt 5, 45), ultrapassando a burocracia, o oficial e os círculos restritos, ameaça a autenticidade da fé e, por isso, deve ser vigorosamente rejeitada.
Quando nos damos conta disto, podemos entender por que motivo as palavras de Jesus sobre o escândalo são tão duras. Para Jesus, o escândalo intolerável consiste em tudo aquilo que destrói e corrompe a nossa confiança no modo de agir do Espírito.
Deus, nosso Pai, não Se deixa vencer em generosidade, e semeia. Semeia a sua presença no nosso mundo, porque «é nisto que está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou» primeiro (1 Jo 4, 10). Aquele amor dá-nos uma certeza profunda: somos procurados por Ele, Ele está à nossa espera. É esta confiança que leva o discípulo a estimular, acompanhar e fazer crescer todas as boas iniciativas que existem ao seu redor. Deus quer que todos os seus filhos tomem parte na festa do Evangelho. Não ponhais obstáculo ao que é bom – diz Jesus –, antes pelo contrário, ajudai-o a crescer. Pôr em dúvida a obra do Espírito, dar a impressão de que a mesma não tem nada a ver com aqueles que não são «do nosso grupo», que não são «como nós», é uma tentação perigosa. Não só bloqueia a conversão à fé, mas constitui uma perversão da fé.
A fé abre a «janela» à presença operante do Espírito e demonstra-nos que a santidade, tal como a felicidade, está sempre ligada aos pequenos gestos. «Seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de Cristo, (…) não perderá a sua recompensa», diz Jesus (Mc 9, 41). São gestos mínimos, que uma pessoa aprende em casa; gestos de família que se perdem no anonimato da vida diária, mas que fazem cada dia diferente do outro. São gestos de mãe, de avó, de pai, de avô, de filho. São gestos de ternura, de afeto, de compaixão. Gestos como o prato quente de quem espera para jantar, como o café da manhã de quem sabe acompanhar o levantar na alvorada. São gestos familiares. É a bênção antes de dormir, e o abraço ao regressar duma jornada de trabalho. O amor exprime-se em pequenas coisas, na atenção aos detalhes de cada dia que fazem com que a vida tenha sempre sabor de casa. A fé cresce, quando é vivida e plasmada pelo amor. Por isso, as nossas famílias, as nossas casas são autênticas igrejas domésticas: são o lugar ideal onde a fé se torna vida e a vida se torna fé.
Jesus convida-nos a não obstaculizar estes pequenos gestos miraculosos; antes, quer que os provoquemos, que os façamos crescer, que acompanhemos a vida como ela se nos apresenta, ajudando a suscitar todos os pequenos gestos de amor, sinais da sua presença viva e operante no nosso mundo.
Este comportamento a que somos convidados leva-nos a perguntar: Como estamos a trabalhar para viver esta lógica nas nossas famílias e nas nossas sociedades? Que tipo de mundo queremos deixar aos nossos filhos (cf.Laudato si’, 160)? Não podemos responder, sozinhos, a estas perguntas. É o Espírito que nos chama e desafia a responder a elas com a grande família humana. A nossa casa comum não pode mais tolerar divisões estéreis. O desafio urgente de proteger a nossa casa inclui o esforço de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar (cf. ibid., 13). Que os nossos filhos encontrem em nós pontos de referência para a comunhão! Que os nossos filhos encontrem em nós pessoas capazes de se associarem com outras para fazer florir todo o bem que o Pai semeou.
Sem meias palavras mas com afeto, Jesus diz-nos: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem?» (Lc 11, 13). Quanta sabedoria há nestas palavras! De fato nós, seres humanos, quanto a bondade e pureza de coração não temos muito de que nos vangloriarmos; mas Jesus sabe que, relativamente aos filhos, somos capazes de uma generosidade sem limites. Por isso nos encoraja: se tivermos fé, o Pai dar-nos-á o seu Espírito.
Nós cristãos, discípulos do Senhor, pedimos às famílias do mundo que nos ajudem. Somos tantos a participar nesta celebração e isto, em si mesmo, já é algo de profético, uma espécie de milagre no mundo de hoje. Quem dera que fôssemos todos profetas! Quem dera que cada um de nós se abrisse aos milagres do amor a bem de todas as famílias do mundo, para assim podermos superar o escândalo dum amor mesquinho e desconfiado, fechado em si mesmo, sem paciência com os outros!
Como seria bom se por todo o lado, mesmo para além das nossas fronteiras, pudéssemos encorajar e apreciar esta profecia e este milagre! Renovemos a nossa fé na palavra do Senhor, que convida as nossas famílias para esta abertura; que convida todos a participarem na profecia da aliança entre um homem e uma mulher, que gera vida e revela Deus.
Toda a pessoa que desejar formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se com cada ação que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está vivo e operante –, encontrará a nossa gratidão e a nossa estima, independentemente do povo, região ou religião a que pertença.
Que Deus nos conceda a todos, como discípulos do Senhor, a graça de ser dignos desta pureza de coração que não se escandaliza do Evangelho.


Santa Missa no Madison Square Garden



Homilia
Santa Missa no Madison Square Garden
Nova Iorque
25 de setembro de 2015
Encontramo-nos no Madison Square Garden, lugar emblemático desta cidade, sede de importantes encontros desportivos, artísticos, musicais, que congregam pessoas de diferentes partes, e não só desta cidade, mas do mundo inteiro. Neste lugar, que representa as diferentes faces da vida dos cidadãos que se reúnem por interesses comuns, ouvimos: «O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz» (Is 9, 1). O povo que caminhava, o povo no meio das suas actividades, das suas ocupações diárias; o povo que caminhava carregando seus sucessos e erros, seus medos e oportunidades, viu uma grande luz. O povo que caminhava com as suas alegrias e esperanças, com as suas decepções e amarguras, viu uma grande luz.
O povo de Deus é chamado, em cada época, a contemplar esta luz. Luz que quer iluminar as nações: assim o proclamava, cheio de júbilo, o velho Simeão. Luz que quer chegar a cada canto desta cidade, aos nossos concidadãos, em cada espaço da nossa vida.
“O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz”. Uma das características do povo crente passa pela sua capacidade de ver, de contemplar no meio das suas obscuridades a luz que Cristo vem trazer.
O povo crente que sabe olhar, que sabe discernir, que sabe contemplar a presença viva de Deus no meio da sua vida, no meio da sua cidade. Hoje, com o profeta, podemos dizer: o povo que caminha, respira, vive no meio do smog, viu uma grande luz, experimentou um ar de vida.
Viver numa grande cidade é algo de bastante complexo: um contexto multicultural, com grandes desafios difíceis de resolver. As grandes cidades recordam-nos a riqueza escondida no nosso mundo: a variedade de culturas, tradições e histórias. A variedade de línguas, roupas, comida. As grandes cidades tornam-se pólos que parecem apresentar a pluralidade das formas que nós, seres humanos, encontramos para responder ao sentido da vida nas circunstâncias em que nos achávamos. Por sua vez, as grandes cidades escondem o rosto de muitos que parecem não ter cidadania ou ser cidadãos de segunda categoria. Nas grandes cidades, sob o ruído do tráfego, sob o ritmo das mudanças, permanecem silenciadas as vozes de tantos rostos que não têm direito à cidadania, não têm direito a fazer parte da cidade – os estrangeiros, os seus filhos (e não só) que não conseguem a escolaridade, as pessoas privadas de assistência médica, os sem-abrigo, os idosos sozinhos – postos à margem das nossas estradas, nos nossos passeios num anonimato ensurdecedor. Entram a fazer parte duma paisagem urbana que lentamente se torna natural aos nossos olhos e, especialmente, no nosso coração.
Saber que Jesus continua a percorrer as nossas estradas, misturando-Se vitalmente com o seu povo, envolvendo-Se e envolvendo as pessoas numa única história de salvação, enche-nos de esperança, uma esperança que nos liberta daquela força que nos impele a isolar-nos, a ignorar a vida dos outros, a vida da nossa cidade. Uma esperança que nos liberta de ligações vazias, das análises abstratas ou da necessidade de sensações fortes. Uma esperança que não tem medo de inserir-se, agindo como fermento, nos lugares onde nos toca viver e atuar. Uma esperança que nos chama a entrever, no meio do smod, a presença de Deus que continua a caminhar na nossa cidade.
Como é esta luz que passa pelas nossas estradas? Como podemos encontrar Deus que vive connosco no meio do smog das nossas cidades? Como podemos encontrar-nos com Jesus vivo e operante no hoje das nossas cidades multiculturais?
O profeta Isaías servir-nos-á de guia neste aprender a ver. Ele apresenta-nos Jesus como Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz (9, 5). Assim, nos introduz na vida do Filho, para que seja a nossa vida também.
«Conselheiro admirável». Narram os Evangelhos que como muitos Lhe iam perguntar: Mestre, que devemos fazer? O primeiro movimento que Jesus gera com a sua resposta é propor, incitar, motivar. Sempre propõe aos seus discípulos que partam, que saiam. Impele-os a ir ao encontro dos outros, onde realmente estão e não onde gostaríamos que estivessem. Ide uma, duas, três vezes, ide sem medo, sem repugnância, ide e anunciai esta alegria que é para todo o povo.
«Deus forte». Em Jesus, Deus fez-Se Emanuel, o Deus-connosco, o Deus que caminha ao nosso lado, que Se misturou com as nossas coisas, nas nossas casas, com as nossas panelas, como gostava de dizer Santa Teresa de Jesus.
«Pai eterno». Nada e ninguém poderá separar-nos do seu Amor. Ide e anunciai, ide e vivei mostrando que Deus está no meio de vós como um Pai misericordioso que sai cada manhã e cada tarde para ver se o seu filho regressa a casa e, logo que o avista, corre a abraçá-lo. Abraço que quer acolher, purificar e elevar a dignidade dos seus filhos. Pai que, no seu abraço, é boa notícia para os pobres, alívio para os aflitos, liberdade para os oprimidos, consolação para os tristes (cf. Is 61, 1).
«Príncipe da paz». Ir ter com os outros para partilhar a boa notícia de que Deus é nosso Pai. Ele caminha ao nosso lado, liberta-nos do anonimato, duma vida sem rostos, vazia, e introduz-nos na escola do encontro. Liberta-nos da guerra da competição, da auto-referencialidade, para nos abrirmos ao caminho da paz. Aquela paz que nasce do reconhecimento do outro, aquela paz que surge no coração ao ver, de modo especial o mais necessitado, como um irmão.
Deus vive nas nossas cidades, a Igreja vive nas nossas cidades e quer ser fermento na massa, quer misturar-se com todos, acompanhando a todos, anunciando as maravilhas d’Aquele que é Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz.
«O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz», e nós somos suas testemunhas.


Visita ao Congresso dos Estados Unidos



DISCURSO
Viagem do Papa Francisco aos Estados Unidos
Visita ao Congresso dos Estados Unidos – Washington D.C
24 de setembro de 2015
Senhor Vice-Presidente,
Senhor Presidente da Câmara dos Representantes,
Distintos Membros do Congresso,
Queridos Amigos!
Sinto-me muito grato pelo convite para falar a esta Assembleia Plenária do Congresso «na terra dos livres e casa dos valorosos». Apraz-me pensar que o motivo para isso tenha sido o facto de também eu ser um filho deste grande continente, do qual muito recebemos todos nós e relativamente ao qual partilhamos uma responsabilidade comum.
Cada filho ou filha duma determinada nação tem uma missão, uma responsabilidade pessoal e social. A vossa responsabilidade própria de membros do Congresso é fazer com que este país, através da vossa actividade legislativa, cresça como nação. Vós sois o rosto deste povo, os seus representantes. Sois chamados a salvaguardar e garantir a dignidade dos vossos concidadãos na busca incansável e exigente do bem comum, que é o fim de toda a política.
Uma sociedade política dura no tempo quando, como uma vocação, se esforça por satisfazer as carências comuns, estimulando o crescimento de todos os seus membros, especialmente aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade ou risco. A actividade legislativa baseia-se sempre no cuidado das pessoas. Para isso fostes convidados, chamados e convocados por aqueles que vos elegeram.
O vosso trabalho lembra-me, sob dois aspectos, a figura de Moisés. Por um lado, o patriarca e legislador do povo de Israel simboliza a necessidade que têm os povos de manter vivo o seu sentido de unidade com os instrumentos duma legislação justa. Por outro lado, a figura de Moisés leva-nos directamente a Deus e, por consequência, à dignidade transcendente do ser humano. Moisés oferece-nos uma boa síntese do vosso trabalho: a vós, pede-se para proteger, com os instrumentos da lei, a imagem e semelhança moldadas por Deus em cada rosto humano.
Nesta perspectiva, hoje gostaria de dirigir-me não só a vós mas, através de vós, a todo o povo dos Estados Unidos. Aqui, juntamente com os seus representantes, quereria aproveitar esta oportunidade para dialogar com tantos milhares de homens e mulheres que se esforçam diariamente por cumprir uma honesta jornada de trabalho, para trazer para casa o pão de cada dia, para poupar qualquer dólar e – passo a passo – construir uma vida melhor para as suas famílias. São homens e mulheres que não se preocupam apenas com pagar os impostos, mas – na forma discreta que os caracteriza – sustentam a vida da sociedade. Geram solidariedade com as suas actividades e criam organizações que ajudam quem tem mais necessidade.
Quereria também entrar em diálogo com as numerosas pessoas idosas que são um depósito de sabedoria forjada pela experiência e que procuram de muito modos, especialmente através do voluntariado, partilhar as suas histórias e experiências. Sei que muitas delas estão aposentadas, mas ainda activas e continuam a empenhar-se na construção deste país. Desejo também dialogar com todos os jovens que lutam por realizar as suas grandes e nobres aspirações, que não se deixam extraviar por propostas superficiais e que enfrentam situações difíceis, tantas vezes resultantes da imaturidade de muitos adultos. Quereria dialogar com todos vós, e desejo fazê-lo através da memória histórica do vosso povo.
A minha visita tem lugar num momento em que homens e mulheres de boa vontade estão a celebrar o aniversário de alguns americanos famosos. Apesar da complexidade da história e da realidade da fraqueza humana, estes homens e mulheres foram capazes, com todas as suas diferenças e limitações, de construir um futuro melhor com trabalho duro e sacrifício pessoal – alguns à custa da própria vida. Deram forma a valores fundamentais, que permanecerão para sempre no espírito do povo americano. Um povo com este espírito pode atravessar muitas crises, tensões e conflitos, já que sempre conseguirá encontrar a força para ir avante e fazê-lo com dignidade. Estes homens e mulheres dão-nos uma possibilidade de ver e interpretar a realidade. Ao honrar a sua memória, somos estimulados, mesmo no meio de conflitos, na vida concreta de cada dia, a haurir das nossas mais profundas reservas culturais.
Quereria mencionar quatro destes americanos: Abraham Lincoln, Martin Luther King, Dorothy Day e Thomas Merton.
Este ano completam-se cento e cinquenta anos do assassinato do Presidente Abraham Lincoln, o guardião da liberdade, que trabalhou incansavelmente para que «esta nação, com a protecção de Deus, pudesse ter um renascimento de liberdade». Construir um futuro de liberdade requer amor pelo bem comum e colaboração num espírito de subsidiariedade e solidariedade.
Todos estamos plenamente cientes e também profundamente preocupados com a situação social e política inquietante do mundo actual. O nosso mundo torna-se cada vez mais um lugar de conflitos violentos, ódios e atrocidade brutais, cometidos até mesmo em nome de Deus e da religião. Sabemos que nenhuma religião está imune de formas de engano individual ou de extremismo ideológico. Isto significa que devemos prestar especial atenção a qualquer forma de fundamentalismo, tanto religioso como de qualquer outro género. É necessário um delicado equilíbrio para se combater a violência perpetrada em nome duma religião, duma ideologia ou dum sistema económico, enquanto, ao mesmo tempo, se salvaguarda a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais. Mas há outra tentação de que devemos acautelar-nos: o reducionismo simplista que só vê bem ou mal, ou, se quiserdes, justos e pecadores. O mundo contemporâneo, com as suas feridas abertas que tocam muitos dos nossos irmãos e irmãs, exige que enfrentemos toda a forma de polarização que o possa dividir entre estes dois campos. Sabemos que, na ânsia de nos libertar do inimigo externo, podemos ser tentados a alimentar o inimigo interno. Imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é o modo melhor para ocupar o seu lugar. Isto é algo que vós, como povo, rejeitais.
Pelo contrário, a nossa resposta deve ser uma resposta de esperança e cura, de paz e justiça. É-nos pedido para fazermos apelo à coragem e à inteligência, a fim de se resolverem as muitas crises económicas e geopolíticas de hoje. Até mesmo num mundo desenvolvido aparecem demasiado evidentes os efeitos de estruturas e acções injustas. Os nossos esforços devem concentrar-se em restaurar a paz, remediar os erros, manter os compromissos, e assim promover o bem-estar dos indivíduos e dos povos. Devemos avançar juntos, como um só, num renovado espírito de fraternidade e solidariedade, colaborando generosamente para o bem comum.
Os desafios, que hoje enfrentamos, requerem uma renovação deste espírito de colaboração, que produziu tantas coisas boas na história dos Estados Unidos. A complexidade, a gravidade e a urgência destes desafios exigem que ponhamos a render os nossos recursos e talentos e nos decidamos a apoiar-nos mutuamente, respeitando as diferenças e convicções de consciência.
Nesta terra, as várias denominações religiosas deram uma grande ajuda na construção e fortalecimento da sociedade. É importante que hoje, como no passado, a voz da fé continue a ser ouvida, porque é uma voz de fraternidade e de amor que procura fazer surgir o melhor em cada pessoa e em cada sociedade. Esta cooperação é um poderoso recurso na luta por eliminar as novas formas globais de escravidão, nascidas de graves injustiças que só podem ser superadas com novas políticas e novas formas de consenso social.
Penso aqui na história política dos Estados Unidos, onde a democracia está profundamente radicada no espírito do povo americano. Qualquer actividade política deve servir e promover o bem da pessoa humana e estar baseada no respeito pela dignidade de cada um. «Consideramos evidentes, por si mesmas, estas verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade» (Declaração de Independência, 4 de Julho de 1776). Se a política deve estar verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, segue-se que não pode estar submetida à economia e às finanças. É que a política é expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior: uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social. Não subestimo as dificuldades que isto implica, mas encorajo-vos neste esforço.
Penso também na marcha que Martin Luther King guiou de Selma a Montgomery, há cinquenta anos, como parte da campanha para conseguir o seu «sonho» de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. Aquele sonho continua a inspirar-nos. Alegro-me por a América continuar a ser, para muitos, uma terra de «sonhos»: sonhos que levam à acção, à participação, ao compromisso; sonhos que despertam o que há de mais profundo e verdadeiro na vida das pessoas. Nos últimos séculos, milhões de pessoas chegaram a esta terra perseguindo o sonho de construírem um futuro em liberdade. Nós, pessoas deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque outrora muitos de nós éramos estrangeiros. Digo-vos isto como filho de imigrantes, sabendo que também muitos de vós sois descendentes de imigrantes. Tragicamente, os direitos daqueles que estavam aqui, muito antes de nós, nem sempre foram respeitados. Por aqueles povos e as suas nações, desejo, a partir do coração da democracia americana, reafirmar a minha mais alta estima e consideração. Aqueles primeiros contactos foram muitas vezes tumultuosos e violentos, mas é difícil julgar o passado com os critérios do presente. Todavia, quando o estrangeiro no nosso meio nos interpela, não devemos repetir os pecados e os erros do passado. Devemos decidir viver agora o mais nobre e justamente possível e, de igual modo, formar as novas gerações para não virarem as costas ao seu «próximo» e a tudo aquilo que nos rodeia. Construir uma nação pede-nos para reconhecer que devemos constantemente relacionar-nos com os outros, rejeitando uma mentalidade de hostilidade para se adoptar uma subsidiariedade recíproca, num esforço constante de contribuir com o melhor de nós. Tenho confiança que o conseguiremos.
O nosso mundo está a enfrentar uma crise de refugiados de tais proporções que não se via desde os tempos da II Guerra Mundial. Esta realidade coloca-nos diante de grandes desafios e decisões difíceis. Também neste continente, milhares de pessoas sentem-se impelidas a viajar para o Norte à procura de melhores oportunidades. Porventura não é o que queríamos para os nossos filhos? Não devemos deixar-nos assustar pelo seu número, mas antes olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor que pudermos às suas situações. Uma resposta que seja sempre humana, justa e fraterna. Devemos evitar uma tentação hoje comum: descartar quem quer que se demonstre problemático. Lembremo-nos da regra de ouro: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (Mt 7, 12).
Esta norma aponta-nos uma direcção clara. Tratemos os outros com a mesma paixão e compaixão com que desejamos ser tratados. Procuremos para os outros as mesmas possibilidades que buscamos para nós mesmos. Ajudemos os outros a crescer, como quereríamos ser ajudados nós mesmos. Em suma, se queremos segurança, demos segurança; se queremos vida, demos vida; se queremos oportunidades, providenciemos oportunidades. A medida que usarmos para os outros será a medida que o tempo usará para connosco. A regra de ouro põe-nos diante também da nossa responsabilidade de proteger e defender a vida humana em todas as fases do seu desenvolvimento.
Esta convicção levou-me, desde o início do meu ministério, a sustentar a vários níveis a abolição global da pena de morte. Estou convencido de que esta seja a melhor via, já que cada vida é sagrada, cada pessoa humana está dotada duma dignidade inalienável, e a sociedade só pode beneficiar da reabilitação daqueles que são condenados por crimes.
Recentemente, os meus irmãos bispos aqui nos Estados Unidos renovaram o seu apelo pela abolição da pena de morte. Não só os apoio, mas encorajo também todos aqueles que estão convencidos de que uma punição justa e necessária nunca deve excluir a dimensão da esperança e o objectivo da reabilitação.
Nestes tempos em que as preocupações sociais são tão importantes, não posso deixar de mencionar a Serva de Deus Dorothy Day, que fundou o Catholic Worker Movement. O seu compromisso social, a sua paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos estavam inspirados pelo Evangelho, pela sua fé e o exemplo dos Santos.
Quanto estrada percorrida neste campo em tantas partes do mundo! Quanto se fez nestes primeiros anos do terceiro milénio para fazer sair as pessoas da pobreza extrema! Sei que partilhais a minha convicção de que se tem de fazer ainda muito mais e de que, em tempos de crise e dificuldade económica, não se deve perder o espírito de solidariedade global. Ao mesmo tempo, desejo encorajar-vos a não esquecer todas as pessoas à nossa volta encastradas nas espirais da pobreza. Há necessidade de dar esperança também a elas. A luta contra a pobreza e a fome deve ser travada com constância nas suas múltiplas frentes, especialmente nas suas causas. Sei que hoje, como no passado, muitos americanos estão a trabalhar para enfrentar este problema.
Naturalmente uma grande parte deste esforço situa-se na criação e distribuição de riqueza. A utilização correcta dos recursos naturais, a aplicação apropriada da tecnologia e a capacidade de orientar devidamente o espírito empresarial são elementos essenciais duma economia que procura ser moderna, inclusiva e sustentável. «A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum» (Enc. Laudato si’, 129). Este bem comum inclui também a terra, tema central da Encíclica que escrevi, recentemente, para «entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum» (ibid., 3). «Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós» (ibid., 14).
Na encíclica Laudato si’, exorto a um esforço corajoso e responsável para «mudar de rumo» (ibid., 61) e evitar os efeitos mais sérios da degradação ambiental causada pela actividade humana. Estou convencido de que podemos fazer a diferença e não tenho dúvida alguma de que os Estados Unidos – e este Congresso – têm um papel importante a desempenhar. Agora é o momento de empreender acções corajosas e estratégias tendentes a implementar uma «cultura do cuidado» (ibid., 231) e «uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza» (ibid., 139). Temos a liberdade necessária para limitar e orientar a tecnologia (cf. ibid., 112), para individuar modos inteligentes de «orientar, cultivar e limitar o nosso poder» (ibid., 78) e colocar a tecnologia «ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral» (ibid., 112). A este respeito, confio que as instituições americanas de investigação e académicas poderão dar um contributo vital nos próximos anos.
Um século atrás, no início da I Grande Guerra que o Papa Bento XV definiu «massacre inútil», nascia outro americano extraordinário: o monge cisterciense Thomas Merton. Ele continua a ser uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas. Na sua autobiografia, deixou escrito: «Vim ao mundo livre por natureza, imagem de Deus; mas eu era prisioneiro da minha própria violência e do meu egoísmo, à imagem do mundo onde nascera. Aquele mundo era o retrato do Inferno, cheio de homens como eu, que amam a Deus e contudo odeiam-No; nascidos para O amar, mas vivem no medo de desejos desesperados e contraditórios». Merton era, acima de tudo, homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também homem de diálogo, um promotor de paz entre povos e religiões.
Nesta perspectiva de diálogo, gostaria de saudar os esforços que se fizeram nos últimos meses para procurar superar as diferenças históricas ligadas a episódios dolorosos do passado. É meu dever construir pontes e ajudar, por todos os modos possíveis, cada homem e cada mulher a fazerem o mesmo. Quando nações que estiveram em desavença retomam o caminho do diálogo – um diálogo que poderá ter sido interrompido pelas mais válidas razões –, abrem-se novas oportunidades para todos. Isto exigiu, e exige, coragem e audácia, o que não significa irresponsabilidade. Um bom líder político é aquele que, tendo em conta os interesses de todos, lê o momento presente com espírito de abertura e sentido prático. Um bom líder político não cessa de optar mais por «iniciar processos do que possuir espaços» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 222-223).
Estar ao serviço do diálogo e da paz significa também estar verdadeiramente determinado a reduzir e, a longo prazo, pôr termo a tantos conflitos armados em todo o mundo. Aqui devemos interrogar-nos: Por que motivo se vendem armas letais àqueles que têm em mente infligir sofrimentos inexprimíveis a indivíduos e sociedade? Infelizmente a resposta, como todos sabemos, é apenas esta: por dinheiro; dinheiro que está impregnado de sangue, e muitas vezes sangue inocente. Perante este silêncio vergonhoso e culpável, é nosso dever enfrentar o problema e deter o comércio de armas.
Três filhos e uma filha desta terra, quatro indivíduos e quatro sonhos: Lincoln, a liberdade; Martin Luther King, a liberdade na pluralidade e não-exclusão; Dorothy Day, a justiça social e os direitos das pessoas; e Thomas Merton, capacidade de diálogo e abertura a Deus.
Quatro representantes do povo americano.
Concluirei a minha visita ao vosso país em Filadélfia, onde participarei no Encontro Mundial das Famílias. É meu desejo que, durante toda a minha visita, a família seja um tema recorrente. Como foi essencial a família na construção deste país! E como merece ainda o nosso apoio e encorajamento! E todavia não posso esconder a minha preocupação pela família, que está ameaçada, talvez como nunca antes, de dentro e de fora. As relações fundamentais foram postas em discussão, bem como o próprio fundamento do matrimónio e da família. Posso apenas repropor a importância e sobretudo a riqueza e a beleza da vida familiar.
Em particular quereria chamar a atenção para os membros da família que são os mais vulneráveis: os jovens. Para muitos deles anuncia-se um futuro cheio de tantas possibilidades, mas muitos outros parecem desorientados e sem uma meta, encastrados num labirinto sem esperança, marcado por violências, abusos e desespero. Os seus problemas são os nossos problemas. Não podemos evitá-los. É necessário enfrentá-los juntos, falar deles e procurar soluções eficazes em vez de ficar empantanados nas discussões. Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque lhes faltam possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família.
Uma nação pode ser considerada grande, quando defende a liberdade, como fez Lincoln; quando promove uma cultura que permita às pessoas «sonhar» com plenos direitos para todos os seus irmãos e irmãs, como procurou fazer Martin Luther King; quando luta pela justiça e pela causa dos oprimidos, como fez Dorothy Day com o seu trabalho incansável, fruto duma fé que se torna diálogo e semeia paz no estilo contemplativo de Thomas Merton.
Nestas notas, procurei apresentar algumas das riquezas do vosso património cultural, do espírito do povo americano. Faço votos de que este espírito continue a desenvolver-se e a crescer de tal modo que o maior número possível de jovens possa herdar e habitar numa terra que inspirou tantas pessoas a sonhar.
Deus abençoe a América!

Visita do Papa Francisco aos Estados Unidos






DISCURSO
Viagem do Papa Francisco aos Estados Unidos
Visita à Sede da Organização das Nações Unidas – ONU
Sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores!
Mais uma vez, seguindo uma tradição de que me sinto honrado, o Secretário-Geral das Nações Unidas convidou o Papa para falar a esta distinta assembleia das nações. Em meu nome e em nome de toda a comunidade católica, Senhor Ban Ki-moon, desejo manifestar-lhe a gratidão mais sincera e cordial; agradeço-lhe também as suas amáveis palavras. Saúdo ainda os chefes de Estado e de Governo aqui presentes, os embaixadores, os diplomatas e os funcionários políticos e técnicos que os acompanham, o pessoal das Nações Unidas empenhado nesta LXX Sessão da Assembleia Geral, o pessoal de todos os programas e agências da família da ONU e todos aqueles que, por um título ou outro, participam nesta reunião. Por vosso intermédio, saúdo também os cidadãos de todas as nações representadas neste encontro. Obrigado pelos esforços de todos e cada um em prol do bem da humanidade.
Esta é a quinta vez que um Papa visita as Nações Unidas. Fizeram-no os meus antecessores Paulo VI em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995 e o meu imediato antecessor, hoje Papa emérito Bento XVI, em 2008. Nenhum deles poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caracterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, superação de qualquer limite natural à afirmação do poder. Uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas actividades.
A história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas, que festeja nestes dias o seu septuagésimo aniversário, é uma história de importantes sucessos comuns, num período de inusual aceleração dos acontecimentos. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras aquisições em todos os sectores da projecção internacional das actividades humanas. Todas estas realizações são luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos colectivos. Apesar de serem muitos os problemas graves por resolver, todavia é seguro e evidente que, se faltasse toda esta actividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades. Cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização.
Por isso, presto homenagem a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes setenta anos. Em particular, desejo hoje recordar aqueles que deram a sua vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação.
A experiência destes setenta anos demonstra que, para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objetivo final que é conceder a todos os países, sem exceção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões. Esta necessidade duma maior equidade é especialmente verdadeira nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises econômicas. Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento. Os Organismos Financeiros Internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência.
A tarefa das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar onipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efetiva distribuição do poder (político, econômico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois setores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e econômicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão.
Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente», por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a ação humana deve reconhecer e respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico» (Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção deste ambiente. Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas. Nós cristãos, juntamente com as outras religiões monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81).
O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo fato de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão econômica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente. Estes fenômenos constituem, hoje, a «cultura do descarte» tão difundida e inconscientemente consolidada.
O caráter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a este respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes. A adoção da «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável», durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efetivos.
Todavia não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, mesmo se constituem um passo necessário para a solução dos problemas. A definição clássica de justiça, a que antes me referi, contém como elemento essencial uma vontade constante e perpétua: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efetiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenômeno da exclusão social e econômica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos.
A multiplicidade e complexidade dos problemas exigem servir-se de instrumentos técnicos de medição. Isto, porém, esconde um duplo perigo: limitar-se ao exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos – metas, objetivos e indicadores estatísticos –, ou julgar que uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios. É preciso não perder de vista, em momento algum, que a ação política e econômica só é eficaz quando é concebida como uma atividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e que tem sempre presente que, antes e para além de planos e programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se vêem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer direito.
Para que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam atores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) –, que é assegurado antes de mais nada respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente.
Ao mesmo tempo, os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efetiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade do espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e os outros direitos civis.
Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação. Ao mesmo tempo, estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar o direito à existência da própria natureza humana.
A crise ecológica, juntamente com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana. As nefastas consequências duma irresponsável má gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder, devem constituir um apelo a esta severa reflexão sobre o homem: «O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza» (BENTO XVI, Discurso ao Parlamento da República Federal da Alemanha, 22 de Setembro de 2011; citado na Enc. Laudato si’, 6). A criação vê-se prejudicada «onde nós mesmos somos a última instância (…). E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos» (BENTO XVI, Discurso ao clero da Diocese de Bolzano-Bressanone, 6 de Agosto de 2008; citado na Enc. Laudato si’, 6). Por isso, a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher (cf. Enc. Laudato si’, 155) e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões (cf. ibid., 123; 136).
Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata atuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra» (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo) e «promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade» (ibid.) corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos e, em última análise, irresponsáveis.
A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e entre os povos.
Para isso, é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental. A experiência destes setenta anos de existência das Nações Unidas, em geral, e, de modo particular, a experiência dos primeiros quinze anos do terceiro milênio mostram tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico.
O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Contrasta fortemente com estas afirmações – e nega-as na prática – a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares. Uma ética e um direito baseados sobre a ameaça da destruição recíproca – e, potencialmente, de toda a humanidade – são contraditórios e constituem um dolo em toda a construção das Nações Unidas, que se tornariam «Nações Unidas pelo medo e a desconfiança». É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.
O recente acordo sobre a questão nuclear, numa região sensível da Ásia e do Médio Oriente, é uma prova das possibilidades da boa vontade política e do direito, cultivados com sinceridade, paciência e constância. Faço votos de que este acordo seja duradouro e eficaz e, com a colaboração de todas as partes envolvidas, produza os frutos esperados.
Nesta linha, não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional. Por isso, embora desejasse não ter necessidade de o fazer, não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu patrimônio cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão.
Estas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos. Nas guerras e conflitos, existem pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem. Seres humanos que se tornam material de descarte, enquanto nada mais se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.
Como pedi ao Secretário-Geral das Nações Unidas, na minha carta de 9 de Agosto de 2014, «a mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas» e para proteger as populações inocentes.
Nesta mesma linha, quero citar outro tipo de conflitualidade, nem sempre assim explicitada, mas que inclui silenciosamente a morte de milhões de pessoas. Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenómeno do narcotráfico. Uma guerra «suportada» e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção, que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.
Comecei a minha intervenção recordando as visitas dos meus antecessores. Agora quereria, em particular, que as minhas palavras fossem como que uma continuação das palavras finais do discurso de Paulo VI, pronunciadas quase há cinquenta anos, mas de valor perene. «Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade» (Discurso aos Representantes dos Estados, 4 de Outubro de 1965, n. 7). Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: «O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas» (ibid.).
A casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada.
Tal compreensão e respeito exigem um grau superior de sabedoria, que aceite a transcendência, renuncie à construção duma elite onipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e coletiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar» (ibid.).
O Gaúcho Martín Fierro, um clássico da literatura da minha terra natal, canta: «Os irmãos estejam unidos, porque esta é a primeira lei. Tenham união verdadeira em qualquer tempo que seja, porque se litigam entre si, devorá-los-ão os de fora».
O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta uma crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo «todo o fundamento da vida social» e assim «acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses» (Enc. Laudato si’, 229).
O tempo presente convida-nos a privilegiar ações que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 223).
Não podemos permitir-nos o adiamento de «algumas agendas» para o futuro. O futuro exige-nos decisões críticas e globais face aos conflitos mundiais que aumentam o número dos excluídos e necessitados.
A louvável construção jurídica internacional da Organização das Nações Unidas e de todas as suas realizações – melhorável como qualquer outra obra humana e, ao mesmo tempo, necessária – pode ser penhor dum futuro seguro e feliz para as gerações futuras. Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado interesses setoriais e ideologias e procurarem sinceramente o serviço do bem comum. Peço a Deus onipotente que assim seja, assegurando-vos o meu apoio, a minha oração, bem como o apoio e as orações de todos os fiéis da Igreja Católica, para que esta Instituição, com todos os seus Estados-Membros e cada um dos seus funcionários, preste sempre um serviço eficaz à humanidade, um serviço respeitoso da diversidade e que saiba potenciar, para o bem comum, o melhor de cada nação e de cada cidadão.
A bênção do Altíssimo, a paz e a prosperidade para todos vós e para todos os vossos povos. Obrigado!